saúde,

Um olhar em perspectiva

Daniela Filipe Bento Daniela Filipe Bento Seguir 5 de dezembro de 2019 · 5 mins read
Um olhar em perspectiva
Partilha

São quase oito da noite, já jantei e já fiz quase todas as tarefas que me tinha comprometido a fazer hoje. No que resta do dia ainda acabo o que falta fazer. Não são muitas, mas as suficientes para me manter ocupada até começar a preparar o sono. O sono esse, finalmente, parece estar a ficar regulado, há uma semana que durmo relativamente bem. Foi um processo difícil de acertar com as medidas certas para me proporcionar um descanso mais efectivo. Dormi bem, hoje acabei por ter um dia relativamente tranquilo e calmo. Sem pesares ou tristezas.

Esperança

Este processo tem sido moroso, o estado em que estava há umas semanas era de ruptura total. Estava catatónica e sem capacidade de dar qualquer resposta ao mundo, não falava, não escrevia, não tinha forma de comunicar. As semanas têm passado e com o acompanhamento devido, afectivo, terapêutico e médico, tenho melhorado a um bom ritmo. Um processo dificultado pela minha resistência a dormir, a conseguir desligar e consequentemente, a descansar.

Porém, sei que tenho feito largos passos e tenho feito tudo o que está ao meu alcance para colaborar nas minhas melhoras. Escrever é um processo terapêutico para mim, permite-me lançar para fora o que sinto, materializando e podendo recordar mais tarde. Para além destes textos, tenho os meus diários e outros registos paralelos que vou escrevendo. É um processo vital para mim.

Por outro lado, a minha recuperação não teria sido tão eficaz sem as pessoas que me rodeiam neste momento, desde a minha rede afectiva, à minha terapeuta e à minha médica. Têm sido vitais para este processo de retorno. Hoje quero agarrar a vida, quero voltar a inteirar-me de mim, há umas semanas queria desaparecer, nada tinha significado. Hoje acredito que vou ficar bem e vou voltar a sorrir, há umas semanas não acreditava em recuperação possível, só tristeza.

No entanto, numa sociedade tão precarizada como a nossa, o facto de eu ter um seguimento clínico adequado é um privilégio que me toca. Muitas vezes falamos na decadência do nosso sistema nacional de saúde (SNS), do escasso financiamento para a saúde mental, a dificuldade em encontrar terapeutas preparados para determinadas situações e médicos com posturas humanizantes. Sinto-me privilegiada por ter pessoas que me acompanham que entendem todas as minhas questões transversalmente, não olhando o meu quadro clínico como uma fonte isolada da sociedade e daquilo que esta acarreta no meu caso em particular. Sinto-me privilegiada por conseguir ter os meios para conseguir este acompanhamento. Não generalizando, a minha experiência no SNS não foi positiva, tendo a minha situação até sido agravada devido à falta de atenção das pessoas que me acompanhavam - porém, é uma situação bastante comum em relatos que vou ouvindo de pessoas que tentam ser acompanhadas neste sistema, falta de médicos, falta de terapêutas, falta de cuidados.

Segundo o site[1] da Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental, mais de um quinto dos portugueses sofre perturbação psiquiátrica, sendo o segundo país da Europa com a taxa mais elevada. Pelo mundo, só um quarto das pessoas com perturbação mental recebe tratamento e apenas 10% tem tratamento considerado adequado. Sendo nos últimos anos a principal causa de incapacidade e morbilidade nas sociedades.

Quando observo estes valores, há muitas questões que me surgem, nomeadamente sobre as actuais dinâmicas sociais.

Os últimos anos têm sido palco de grandes mudanças estruturais na sociedade. Muitas destas mudanças dão-se a velocidades elevadas sem qualquer problematização das mesmas. Isto equivale a uma época rica em mudanças políticas, económicas e em mudanças culturais - nem sempre para melhor.
Estas mudanças, acompanhadas por uma mudança radical na forma como comunicamos entre pares, na mudança radical como expomos os nossos problemas, tem provocado também um maior isolamento, o fraccionamento familiar. Ao mesmo tempo, a sociedade tem-se naturalizado competitiva, muito competitiva, apostando na busca pelo progresso individual, deixando pouco espaço para a fragilidade, vulnerabilidade - tornando-se estes, sinais de fraqueza.

Também, de uma forma geral, as pessoas que violentadas pela construção de sociedade - uma sociedade machista, monocishetero-normativa, racista, xenófoba, classista, colonialista, capacitista, capitalista…; que privilegia determinadas estruturas em relação a outras - têm uma vulnerabilidade maior e maior risco de sofrer algum problema de saúde mental.

No entanto, não sendo os factores externos causas únicas de determinados diagnósticos, o modo como socialmente estabelecemos relações influencia a maneira como estes afectam pessoas nos mais diversos contextos. Deste modo, o panorama da saúde mental pode ser visto como uma perspectiva de olhar a nossa sociedade contemporânea. A falta de suporte e o abandono institucional, a falta de condições laborais, o bullying nas escolas, a falta de condições nos sistemas de saúde, o encarecimento da vida, o contexto político e económico, a cultura, entre outras causas, colaboram para que não se tenha uma acção preventiva sobre as questões de saúde mental.

É importante começarmos a coletivizar os nossos sentires e problemas, entendermos a nossa humanidade como parte da nossa existência, entendermos que os nossos corpos não têm recursos infinitos e que necessitamos de problematizar quando a exigência nos coloca em situações limite das nossas capacidades. É importante aprender que partilhar a nossa vulnerabilidade não é um sinal de fraqueza, mas um sinal de força - é dar sinais claros de que a sociedade em que vivemos não está pensada para a vida, mas sim para a obtenção de resultados de interesse individual através da exploração de todas as camadas sociais a vários níveis diferentes.

[1] - https://www.sppsm.org/informemente/guia-essencial-para-jornalistas/perturbacao-mental-em-numeros/

Dani

Imagem: New hope - Ashish Lohorung

Daniela Filipe Bento

Escrito por Daniela Filipe Bento Seguir

escreve sobre género, sexualidade, saúde mental e justiça social, activista anarco/transfeminista radical, engenheira de software e astrofísica e astronoma