geral, prosa,

Morri, mas sobrevivi

Daniela Filipe Bento Daniela Filipe Bento Seguir 28 de agosto de 2018 · 3 mins read
Morri, mas sobrevivi
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Acordo. As folhas dançam como entes cheios de vida e animação depois de uma longa festa entre frutas e flores. Acordo. É noite ainda, o sol não brilha e a lua está escondida, os animais procuram um lugar para estar, para ficar, para acarinhar! Acordo, ainda não é dia, mas a noite não vai terminar. Fecho os olhos, tento-me recordar de como é estar banhada pelos raios luminosos e brilhantes da nossa estrela mãe. As memórias perdem-se com os barulhos e com a sonoridade da noite… serena, calma, profunda. As memórias estão ali e não querem estar ao mesmo tempo, querem ser vida. Vida essa que se prolongou por anos, séculos, milénios. Vida essa que existe só pelo facto de ser lembrada. Uma memória que cria vida, uma vida que encerra memória. Volto a abrir os olhos e continuo a ver o escuro da noite. A noite permanece.

Sunrise

Passam anos. Adormeço.

Sonho que não há dia, apenas noite. Sonho que não há caminho, apenas um beco sem saída. Sonho que não há água, só a secura da sede. Sonho que nada há, apenas eu. Apenas eu e o meu reflexo deformado, simples, medroso.
Sonho que nada há,
Sonho que nada há.

Atingida. O sangue percorre o meu pescoço. O sangue escorre pelos braços e chega ao chão. Pingo por pingo. Um rio corre como se de oceanos vermelhos o mundo fosse formado. Um rio que atropela vivências, existências, estados. Um rio que desce do meu corpo para outrem chegar a lado algum, consumindo dor e manipulando todas as células que me compoêem. Atingida, a dor espalha-se pelas rochas e rochedos, destacando-se em areias movediças.

Um punhado de areia, um punhado de sentimentos. As minhas mãos tocam a praia, mas os pés tocam a floresta. Dividida, esticada, torcida, estou aqui e ali, nos dois e em nenhum. De quando a quando a floresta reserva-se, de quando a quando, a praia encolhe… de quando a quando, as árvores crescem na areia e o oceano substitui a clareira. Um punhado de areia, um punhado de sentimentos, um ínfimo sentir, um supremo reviver.

Provocada. O meu corpo gélido derrete sob as ondas da indagação, sob o movimento da confusão, sob a premissa da solidão. O meu corpo gélido derrete e o meu coração para. Morto. Morto o meu coração para e o meu corpo gélido derrete. Morto na provocação. Sentada, apática, sem forma, o que sobra dele ali fica. Sem destino, sem remédio, sem memória ou vida. Provocada, Morto, Ali fica, jazida… no fim do mundo e no princípio do céu.

Procurada e encontrada. Os animais voltam, as árvores renascem, o mar ecoa na sua distensão. Jazida, ela, a vivência, a pequena mostra de ser, está. Os animais confinam o seu espaço, aquecem, pernoitam. Os animais assim estão. Chorosos. Os animais assim estão. Meigos. A sua pele lembra estar, a sua pele lembra permanecer, a sua pele lembra existir. Os animais assim continuam, os animais assim dão vida.

Morri, mas sobrevivi. Enterrei-me, mas saí do outro lado do mundo. Caí, mas cheguei ao céu. Voltei. Acordei. Abri os olhos. Mas o mundo é outro, é dia, o sol nasceu. O calor atinge os meu braços. Não sei quanto tempo dormi. Mas dormi. Vivi na morte, uma morte experienciada. O sangue parou de correr, agora apenas o suor quente de verão. Sinto o calor suster-se na minha pele. Os animais dançam e as folhas rodopiam entre flores e frutos. Acordei na enseada, acordei rica, acordei de sorriso. Deixo cada raio de luz chegar-me e alimentar o meu corpo. Deixo o mar levar a areia suja e que traga limpa. Deixo que os sonhos sejam isso apenas: sonhos.
Morri, mas sobrevivi,
Morri, mas sobrevivi,

Aqui e sempre, de amor para amor, de amar para amar. Dani

Photo: Jen Scheer

Daniela Filipe Bento

Escrito por Daniela Filipe Bento Seguir

escreve sobre género, sexualidade, saúde mental e justiça social, activista anarco/transfeminista radical, engenheira de software e astrofísica e astronoma