saúde,

Dia Mundial da Prevenção do Suicídio

Daniela Filipe Bento Daniela Filipe Bento Seguir 10 de setembro de 2020 · 7 mins read
Dia Mundial da Prevenção do Suicídio
Partilha

Hoje, dia 10, anota-se o Dia Mundial da Prevenção do Suicídio. Este dia, criado em 2003, pela Associação Internacional para a Prevenção do Suicídio e pela Organização Mundial de Saúde, tem como objectivo sensibilizar e prevenir o suicídio através de medidas práticas e concretas por parte dos Governos e das estruturas Institucionais. Sendo o suicídio uma das 20 maiores causas de morte no mundo, e entre os jovens dos 15 aos 29 anos, a segunda maior causa. Morrem cerca de 800 000 pessoas a cada ano, o que equivale a aproximadamente 1 pessoa a cada 40 segundos[1]. Hoje, temos um factor extra, vivemos em plena pandemia: estamos no meio de um confinamento continuado, com liberdades limitadas e com um profundo isolamento. Não podemos deixar de pensar na implicação deste factor na saúde mental das pessoas.

Há, aproximadamente um ano, publiquei um artigo onde escrevia:

“Hoje é um desses dias, um desses dias que não me quero calar. Hoje é um desses dias, que não quero cair na invisibilidade.”[2]

Passado um ano continuo a achar que não me quero calar, que não quero cair na invisibilidade. E porquê? Porque a saúde mental ainda é um estigma e ainda é um assunto de difícil interlocução na sociedade. O modo produtivista, num regime capitalista como o nosso, não nos deixa parar para reflectir em diversas questões e, uma delas, é a nossa própria saúde integral e a saúde integral das pessoas com quem estabelecemos relações (ou da sociedade em geral). Fala-se em saúde, em bem estar, mas na realidade o que se está a falar é em saúde e bem estar físico. Mas a saúde é mais do que isso, é também a saúde mental, o bem estar mental e social.

“ O conceito de saúde adotado nesta publicação é o que a Organização Mundial da Saúde (OMS) elaborou em 1971, que define saúde como “um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença ou enfermidade” “[3]

No entanto, apesar de haver um consenso sobre o que é saúde, continua-se a estigmatizar e a invisibilizar todo o processo de bem estar mental (não apenas nos casos de doença do foro psíquico). Para uma pessoa que padece de um problema de saúde, esta estigmatização faz com que, muitas vezes, para além dos fatores da própria doença, tenha mais dificuldades em obter um trabalho ou mantê-lo, bem como manter e obter relações estáveis e não tóxicas. Isto acontece porque há uma realidade que é invisibilizada e simultaneamente contestada e invalidada (um duplo standard). Em muitas situações, doença mental é sinónimo de preguiça, de não vontade, de descuido e de fraqueza. É necessário mudar esta visão, é necessário pensar nas pessoas de uma forma holística e de uma forma integral. Porém isso só é possível se começarmos a mudar profundamente e de uma forma radical a estrutura das nossas relações. É preciso reconstruir o modo de nos relacionarmos, evitar o capacitismo, e desconstruir ideias que estão comumente associadas a bem estar mental. É, também, preciso abandonar as velhas concepções psiquiátricas e terapêuticas de que uma receita e um modelo serve para todo o mundo, esquecendo a particularidade de cada pessoa, o seu contexto e a sua trajectória. Novamente, os sistemas de saúde também devem olhar de uma forma holística e individual cada caso e cada realidade.

Um das formas de entender que não podemos isolar a saúde mental de todos os outros processos sociais é, por exemplo, quando falamos de pessoas que sofrem opressões sociais, singulares ou múltiplas. Os seus problemas de saúde são agravados por estes sistemas estruturais e deste modo, de acordo com as suas vivências a forma de enquadrar cada dificuldade assume uma forma particular, associada e atravessada por este mesmo contexto. Conclui-se que este modelo é único e intransmissível.

Sabemos assim que a saúde mental e bem estar mental e social está conectado com problemas e dificuldades internas, mas também com o ambiente social, económico e político que se tive em cada momento. E o actual momento é particularmente sensível.

Combater e prevenir o suicídio não é só uma tarefa individual, é uma tarefa comunitária, social e estrutural, em que todas as pessoas devem assumir a sua parte, a sua responsabilidade. Assumir essa responsabilidade não é o mesmo que dizer somos responsáveis por este acto, mas é dizer que todas as pessoas, de alguma forma, podem contribuir para a reconstrução e reorganização social de forma a melhorar as condições sociais e ambientais em que estas pessoas se movem, abrindo espaços para que as suas dores não sejam colocadas em causa. Atualmente existem muitas lacunas relacionais que devem ser preenchidas e isso consegue-se com tentativa e erro, com comunicação e com escuta activa. É um facto, não podemos esperar que sejam passos governamentais ou institucionais que façam a diferença à velocidade que é necessária, por isso a necessidade de criarmos as nossas redes de apoio e segurança e construir uma teia de autocuidado e cuidado comunitário.

Mas uma vez que falamos de bem estar mental e social, estas reestruturações não devem ser olhadas apenas do prisma da neuro divergência ou da dificuldade psicológica/emocional. Devem ser equacionadas mesmo quando não existe aparente problema, só assim será possível reduzir o impacto social e ambiental no estado psíquico de cada pessoa, evitando outras consequências piores.

Só a título de curiosidade. No outro dia vi uma imagem que exemplifica bem o estado de alienação actual em relação às pessoas próximas. Existiam duas mesas para recepção de pessoas. Uma, a que recebia as pessoas que escrevem e publicam muitas mensagens de apoio emocional e psicológico, principalmente neste mês. A segunda a que recebia as pessoas que estão de facto a mudar estruturalmente as suas relações para poder fazer um acompanhamento mais próximo. A primeira mesa tinha uma fila enorme, a segunda mesa tinha apenas umas poucas pessoas. É uma amostra do sentimento que se vive nos nossos dias.

É importante perguntar-mo-nos como resolvemos este processo de alienação em relação às pessoas. Primeiro é preciso vontade de o fazer, depois é necessário assumir um compromisso connosco e com as pessoas que nos rodeiam. Não há relação sem compromisso. O compromisso é parte integrante de qualquer relação e vínculo humano. É preciso ter isto em mente quando queremos concretizar uma relação. Só radicalizando as nossas estruturas e subvertendo o actual sistema pelo que nos regemos, é possível essa mudança e obter esse compromisso.

Eu, pessoalmente, acredito na mudança e na transformação social. Sei e quero acreditar que há mais pessoas com essa vontade, porém este é um processo duro, difícil e inquietante. Remexe connosco e com a forma como sentimos o mundo. Mas é necessário e importante. No entanto, acredito que faz parte do nosso crescimento enquanto seres humanos, enquanto seres sociais.

Merecemos mais do que um sistema destrutivo e consumidor das nossas emoções, de um sistema que nos aprisiona nas suas teias, quebrando os nossos laços, o nosso toque físico, a nossa afinidade pessoal. Merecemos mais do que um sistema que só valoriza pelo que fazemos em quantidade e não pelo que somos enquanto pessoas e seres únicos com necessidades específicas. Merecemos mais, muito mais.

Agora lembrem-se… não se esqueçam das pessoas que gostam e vos rodeiam. Incluam as pessoas nas vossas vidas, incluam as pessoas nos vossos estares… estejam presentes. É difícil fazê-lo, mas pensem que só numa verdadeira rede de base nós conseguiremos vencer um sistema que nos aniquila a cada momento.

Dani

Imagem: Depression - Nils Werner

Daniela Filipe Bento

Escrito por Daniela Filipe Bento Seguir

escreve sobre género, sexualidade, saúde mental e justiça social, activista anarco/transfeminista radical, engenheira de software e astrofísica e astronoma