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Dia Internacional das Pessoas Não Binárias

Daniela Filipe Bento Daniela Filipe Bento Seguir 14 de julho de 2020 · 3 mins read
Dia Internacional das Pessoas Não Binárias
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Hoje, 14 de julho, voltamos a celebrar, voltamos a celebrar a nossa existência e a nossa validade. Neste 14 de julho voltamos a reafirmar quem somos, voltamos a dar-nos voz, voltamos a dar-nos espaço. Uma voz que muitas vezes é ignorada, esquecida e abandonada. Uma voz que muitas vezes é desqualificada, é patologizada e invisibilizada. Um espaço que não nos incluí, que nos desprotege, que nos atira para a insegurança. Um espaço onde não pertencemos, onde não existimos. É com um sentimento de orgulho que nós nos afirmamos, que reclamamos a posse da nossa identidade e da nosso forma de estar no mundo, somos pessoas não binárias, com orgulho, com engajamento, com empoderamento. Somos.

Numa sociedade que tem uma herança histórica sobre a forma como são construídas as identidades e corporalidades, é nos permitido reconhecer facilmente a cis-centralidade do sistema, a binariedade incrustada em todos os sistemas vigentes. É nesse meio hostil que pessoas não binárias desenvolvem a sua identidade, se descobrem e procuram a sua integridade pessoal. É nesse meio hostil que pessoas não binárias procuram o seu reconhecimento, a sua congruência e a sua intimidade. É neste espaço que pessoas não binárias provocam o status quo do sistema - de um sistema pouco inclusivo, que funciona em prol de algumas e não de todas as pessoas. É na procura desse lugar na sociedade que confirmamos a invisibilidade a que nos sujeitamos.

O meu processo de descoberta identitária foi um remoinho de sensações, primeiro a minha afirmação enquanto mulher trans, depois a descoberta dos conceitos sobre não binariedade e a minha auto-identificação com o conceito de ageneridade. Uma ausência de género provocadora, assustadora. Um lapso acidental na construção identitária? Ou um abandono completo do sistema mulher-homem, do sistema que procura a homogeneização das identidades e dos corpos e do sistema que quer a diferença na invisibilidade. Acredito que o abandono foi consequente e foi causador desta minha cisão. Creio, também, que a minha construção identitária passou por entregar-me à minha própria incerteza, abrindo o meu imaginário para outras formas de realizar, de fazer e de viver.

Estabelecer-me num mundo que só reconhece a existência de mulheres e homens é estar em permanente confronto e em permanente choque. Confronto porque tomamos as nossas identidades por existentes e válidas numa sociedade que reivindica o contrário. Choque porque exigimos o nosso reconhecimento numa sociedade que sistemicamente só reconhece parte das pessoas e das suas existências.

Reclamamos também o nosso espaço dentro dos movimentos trans, combatendo a binariedade imposta.

Reclamamos também o nosso espaço dentro dos espaços feministas, combatendo a exclusão tida como certa.
Reclamamos também o nosso espaço na sociedade, combatendo a incapacidade de olhar para além do nosso espaço concreto.
Reclamamos isto e tudo mais.
Reclamamos isto e tudo mais.

Sabemos de antemão que leis não mudam sociedades, mas sabemos que leis impulsionam e dão sinais de reconhecimento. Deste modo é urgente e necessário provocar as instituições para que dêem sinais e abertura para incluir as pautas da população não-binária nos seus programas. Que haja um reconhecimento da especificidade de cada pessoa e, nomeadamente, de cada pessoa não-binária, respeitando o seu espaço de autodeterminação e do direito a ver a sua identidade aconchegada de braços abertos. Queremos mais, queremos muito mais. Não dá para afirmar que se tenha feito muito por nós, pelo contrário, muito ainda há por fazer. Muito mesmo.

É preciso que as nossas vozes sejam ouvidas, que não nos apaguem no silêncio
É preciso que as nossas questões sejam entendidas, que não nos patologizem
É preciso que os nossos corpos sejam respeitados, que não nos exotizem
É preciso que as nossas identidades sejam empoderadas, que não nos matem

Não esqueçamos as referências, não esquecemos a necessidade de novos discursos, ou a necessidade de vermo-nos em representação em qualquer parte do espaço público.
Não esqueçamos a necessidade de ter alianças, não esqueçamos a nossa capacidade de ser pessoas humanas e com coração.
Não esqueçamos que estamos aqui e aqui vamos continuar a lutar para que a nossa dignidade seja garantida, que os nossos afetos sejam sinceros, que possamos sorrir ao fim do dia com a certeza de que vou viver mais um dia.

Porque este espaço também é teu.

Dani

Daniela Filipe Bento

Escrito por Daniela Filipe Bento Seguir

escreve sobre género, sexualidade, saúde mental e justiça social, activista anarco/transfeminista radical, engenheira de software e astrofísica e astronoma