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Quando apenas se quer ser ouvida...

Daniela Filipe Bento Daniela Filipe Bento Seguir 23 de dezembro de 2019 · 3 mins read
Quando apenas se quer ser ouvida...
Partilha

Hoje acordei de manhã com vontade de escrever, não aqui, mas nos meus cadernos. Uma vontade súbita de transcrever uma série de sentimentos que me atingiam a alma. Perguntas, respostas, incertezas, certezas e sentires. Tudo cabe nestas linhas, neste papel, nestas letras. Durante aqueles minutos, a caneta era a minha melhor companhia, não questionava, não dava a sua opinião, apenas deixa-se ouvir e transcrever o meu pensamento em linhas umas vezes tortas, outras vezes direitas, palavras que no futuro vou entender e algumas que no futuro, certamente, não vou conseguir decifrar. Na incerteza, escrevo na mesma.

Consentimento

Escrever foi sempre, desde que tenho memória, um processo importante na minha vida. Sempre escrevi muito. Por vezes, menos do que desejava. Escrever muito não é sinónimo de escrever bem, mas escrever muito para mim era desejo de ser ouvida, apenas. O papel é uma ferramenta bastante útil para esse fim. Porém, mais tarde, comecei também a escrever no computador, a partilhar. Os processos de partilha são sempre mais arriscados, expõem-nos mais. Expõem as nossas vulnerabilidades de uma forma diferente.

Normalmente os meus textos são descrições de sentimentos, de estares, de emoções, de sensações. São análises ao meu próprio estar. Críticas que faço a mim mesma para que no futuro possa voltar a ler e relembrar. São, também, outras vezes, textos crus - sensações e emoções que são transcritas directamente, sem processar, sem articular. O lugar de onde falo é pessoal, muito pessoal.

Estas análises e críticas são, para mim, também uma forma de me ajudar a contextualizar os meus sintomas num quadro mais geral, num quadro sócio-cultural. São estratégias que me garantem algum poder e autonomia sobre a minha própria vivência. É um complemento. No entanto, e apesar do efeito terapêutico que a escrita tem, a ajuda médica e psicoterapêutica é muito importante bem como a rede afectiva, de cuidados e de proximidade. Por isto, acredito que para existir uma verdadeira inclusão de pessoas com algum tipo diagnóstico de saúde mental na sociedade é necessária uma reestruturação radical do modo como agimos entre pares, da forma como construímos as nossas relações e as nossas redes.

Numa sociedade que peca pelo isolamento, muitas vezes desresponsabilizamo-nos desse cuidado, connosco e, também, com a outra pessoa. Os diagnósticos de saúde mental, ao contrário de muitos outros diagnósticos, são olhados através de um enorme prisma estigmatizante. Como consequência, pessoas com estes diagnósticos, vêem de uma forma sistémica os seus sintomas serem desvalorizados, criticados, deturpados - muitas vezes aumentando o risco de isolamento. Da mesma forma, a anulação contínua do seu processo de vivência, do seu contexto, do seu passado e futuro - quantas vezes as pessoas confundem os sintomas de doença mental com a própria personalidade da pessoa? Reduzindo a mesma àquele momento, àquela crise, àquele estar.

Neste mesmo sentido, quantas vezes, com boas intenções, invalidamos a própria experiência e autonomia das pessoa dando opiniões e formas de resolver os problemas que não são solicitadas nem consentidas. Muitas vezes, esta forma capacitismo, mascarado de boas intenções, corrobora uma posição de poder que muitas vezes ignoramos. Exceptuando em fases agudas, em que a acção imediata é mais importante que qualquer reflexão ou crítica, a autonomia da pessoa consegue-se respeitando o seu espaço e a sua vivência. Se temos alguma ideia, uma forma que pode funcionar, é sempre importante perguntar se a pessoa quer opinião e se quer ajuda e como a quer: deixá-la decidir sobre o seu futuro.

Decidir pelas pessoas, impondo a uma visão, apagando qualquer experiência passada não é eficaz e, muitas vezes, causa um sentimento de frustração e impotência enorme. Penso que consentir é uma ferramenta poderosa e necessária para elaborar um estado de autonomia plena. Toda a ajuda é sempre bem vinda, claro, mas é importante pensar no modo como o fazemos, como afectamos a pessoa e como possivelmente chocamos com a rede de cuidados que essa pessoa possa já ter.

Em suma, é toda a ajuda pode ser importante, porém a forma como essa ajuda chega pode muitas vezes ser desestruturante para quem a recebe. É importante considerar o meio de como a fazemos chegar, de como queremos ajudar e como efectivamente o fazemos.

Dani

Imagem: Echoes - Fouquier ॐ

Daniela Filipe Bento

Escrito por Daniela Filipe Bento Seguir

escreve sobre género, sexualidade, saúde mental e justiça social, activista anarco/transfeminista radical, engenheira de software e astrofísica e astronoma