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É um lar sem alma

Daniela Filipe Bento Daniela Filipe Bento Seguir 19 de agosto de 2019 · 4 mins read
É um lar sem alma
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Soam os sons dos sinos, a rua, deserta, caminha entre um ponto e outro ponto, a luz reflecte na água das poças que transitam entre as margens da calçada. Mais nada se ouve num raio próximo. Lá longe, imerso na escuridão, pequenos uivos de animais que circulam pelo seu habitat. O silêncio próximo reina. É no silêncio ensurdecedor que se chega à nossa casa. É no silêncio ensurdecedor que se abre a porta para trespassar para um novo mundo. Um mundo onde tudo é possível e nada é concreto. Tudo se transforma, tudo se realiza, tudo se busca… mas tudo se perde nos confins do sentir. Sentir o bafo húmido de uma casa sem vida, o bafo húmido de uma casa dada pelo seu abandono. Uma casa dada ao desterro da sua própria existência. Uma casa que nos provoca sentires contraditórios. Um habitat por onde eu própria me procuro, me encontro, e desapareço.

Gruta

É no abandono do lar que a verdadeira natureza de estar em casa se encontra. É o reencontrar da permanência que sistematiza a dúvida entre estar e não estar presente. Uma casa vazia naturalmente, uma vida vazia por consequência. É, também, no abandono do lar que a verdadeira natureza de coexistir em casa se encontra. É o reencontrar da alma que traduz a beleza da solidão em contraste com o futuro solitário. Porque ser solitário não é estar na solidão e estar na solidão também não é estar solitário. Um goza da opção, o outro goza do sentir. Ambas estão associadas, mas dissociadas. A opção de não estar é também o sentir de não existir. E, não existir, é também a opção de não estar. A casa mexe-se e com ela uma vida eterna de pensamentos, acções e sentires. A casa mexe-se e é, também, com pesar que tudo fica, tudo é passado, tudo deixou para trás uma realidade permanente, constante, mas volátil.

Neste reduto de existência, o lar permanece o único ponto de contacto, o ponto mestre de uma vida que continua no seu pleno desígnio de desenvolvimento. É no lar que nos encontramos para nos desencontrarmos, onde nos procuramos para nos perdermos, onde acordamos para mais tarde adormecer. É no lar, a vivência que me permite coexistir num mundo, num mundo que exercita a transparência da rua, a transparência dos edifícios, a transparência de cada vizinhança. É no lar que pertenço a uma não pertença, a conquista do meu próprio mundo, a conquista da minha própria reflexão, a conquista do meu próprio medo e do meu próprio sentir. É, também, onde a turbulência aparece, no centro de paredes que oscilam, do chão que se abate e no tecto que se projecta no céu. É neste mundo que a lógica deixa para trás a sua existência e a incoerência nasce como a próxima etapa de ser vivo, de se existir e de estar presente na realidade. É neste mundo que os monstros do dia aparecem e os monstros da noite dão de caras consigo mesmos, é neste mundo que a película da vida anda para trás e os mais assombrosos temores nascem como pregas e fendas no chão.

É no lar que tudo acontece, a minha vivência, a minha estrutura, a minha convicção e a minha perdição. É no lar que me encolho mas onde também cresço. É no lar onde me permito estar em ressonância com a minha mente, com a minha colectânea de sentires, com a fonte da minha própria verdade. É no lar onde tudo acontece, mas é no lar onde tudo deixa de acontecer também. As decisões, as concretizações, os formatos e os ideais, de dentro para fora, de fora para dentro. Apenas eu, para sentir. É num lar sem alma que a minha habita, é num lar sem alma que a minha consciência perdura, amadurece, cresce e se desenvolve. É num lar sem alma que a minha tristeza também toma conta de mim, é num lar, este, sem alma que o mundo cai a meus pés e eu caio no mundo. É num lar como este, que pretendo cooperar. É num lar como este, que a vida renasce para nascer para a luz e da estrada deserta fazer uma estrada de viva alma, do silêncio, a música da existência.

É num lar, como o meu, sem alma, que me permito existir.

Dani

Daniela Filipe Bento

Escrito por Daniela Filipe Bento Seguir

escreve sobre género, sexualidade, saúde mental e justiça social, activista anarco/transfeminista radical, engenheira de software e astrofísica e astronoma