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51 Anos de Stonewall

Daniela Filipe Bento Daniela Filipe Bento Seguir 28 de junho de 2020 · 5 mins read
51 Anos de Stonewall
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Hoje, 28 de Junho, assinala-se os 51 anos dos tumultos de Stonewall e 50 anos de comemorações do Orgulho LGBTIQA+. A história é conhecida, porém é também, muitas vezes, interpretada, e desqualificada. A visibilidade consequente desse mesmo processo de afirmação continua a ter bastantes lacunas, bastantes leituras erróneas. Estamos a falar da desqualificação de pessoas trans, travestis, butch, femme, negras, migradas, trabalhadoras do sexo, precárias,… Estamos a falar de um desqualificação que até hoje não teve a devida visibilidade histórica a que tanto nos referimos. Continua a não haver representatividade para estas pessoas, estavam e continuam na margem.

Quando falamos em orgulho é importante contextualizar esse sentir. Desde o individual até à colectividade, até ao movimento e até ao seu impacto político e estrutural. Quando falamos de orgulho é importante reconhecer que estamos a celebrar a nossa resiliência, a nossa reafirmação, a nossa resistência. Estamos a falar de reapropriação dos sentires, das vergonhas e dos medos. Estamos a falar da ressignificação das palavras, dos insultos, do discurso e da língua. No individual, o orgulho é atravessado pelas próprias vivências, pelas violências sofridas dia após dia, momento após momento. Na colectividade falamos das estruturas macro da nossa vivência, aqui o orgulho é atravessado por uma visão macro social, pelas instituições, pelo Estado, pelas violências sistémicas, estruturais e institucionais. O orgulho é atravessado pelas vivências territoriais, particulares de cada contexto, é atravessado pelas fronteiras impostas. É, de uma forma geral, produto de um macro sistema que vai para além de cada fronteira: o patriarcado, o capitalismo, o colonialismo, o racismo, a xenofobia, o capacitismo, o heterocis-monosexismo, entre outras violências estruturais.

Lutar pelas causas LGBTIQA+ não é apenas lutar pelo respeito à diversidade sexual e identitária. Lutar pela causa LGBTIQA+ passa pela desconstrução do sistema como um todo, de uma forma interseccional. Não é uma causa separável da causa anti-capitalista, anti-racista, anti-colonialista, anti-capacitista,… É lutar para fazer diferente, para construir diferente. Diferente destas lógicas castradoras e violentas que acabam sempre a beneficiar certos grupos em relação a outros grupos. É também lutar para que o acesso aos meios, ao espaço público e a uma vida digna o seja possível para todas as pessoas. Esta luta é também sobre os territórios, sobre as fronteiras, sobre os limites, sobre a precariedade e sobre a saúde. Esta luta é também sobre o acesso à habitação, a soberania alimentar, sobre economia justa/sustentável e sobre o meio ambiente. Esta luta é transversal, não há uma opressão que se demonstre no singular, há opressões que cruzam várias camadas da existência de alguém. Há opressões que moldam como outras opressões funcionam e como se convertem na prática.

Deslocar a luta LGBTIQA+ de todas as outras formas de luta social é apagar e invisibilizar todas as pessoas que não se vêem representadas por este sistema. É apagar e invisibilizar todas as formas de viver e de se relacionar com o mundo. Deslocar a luta LGBTIQA+ é, também, não entender as especificidades de cada uma. Ter uma pessoa LGBTIQA+ junto dos órgãos de poder estatal não me representa, não me representa porque o nosso sistema político é canibal. Usa as pessoas, coloca-as na posição de representatividade, mas as políticas internas continuam a ser as mesmas ou piores. A representatividade é importante, mas só será possível quando existir uma verdadeira busca por políticas que permitam desconstruir a transversalidade das opressões que cruzam imensas pessoas. Até lá, seremos meros peões do sistema, fazendo jogos de cintura, suplicando por medidas que nos dêem alguma garantia.

Em 2020 ainda se romantiza e se apaga a história dos motins de Stonewall. Stonewall foi uma manifestação clara de insatisfação, foi um momento necessário e urgente para mudar o rumo da história. Foi na precariedade, na pobreza, na humilhação e na violência que estas pessoas se chegaram à frente. Foi na qualidade (que lhes atribuíam) de pessoas de segunda ou terceira, ou de nenhum nível, que estas pessoas se chegaram à frente. É neste contexto que nascem as nossas marchas, as nossas tentativas de ocupação do espaço público, a nossa provocação a quem nos sempre humilhou e nos violentou. É assim importante marchar, mas marchar para fazer diferente, marchar para reivindicar, porque nada do que temos é garantido, nada do que temos nos foi dado em troca de pouco… foi sempre necessário um esforço individual e colectivo, foi sempre necessário desacordos ou ambivalências.

Urge a necessidade de pensar, de construir, de abraçar a mudança de forma radical. Urge a necessidade de radicalizar os nossos afetos, os nossos vínculos, o nosso amor. Urge a necessidade de radicalizar a nossa forma de ver o mundo. Ver através dos olhos de quem quer a mudança, a revolução e a construção de uma sociedade mais una e justa.

A revolução não se faz pedindo espaço para que a minha voz seja ouvida, a revolução faz-se ocupando esse espaço heterocismono centrado. Mudando os discursos, mudando os referenciais, permitindo que a minha história também seja reconhecida como uma história de luta, permitindo que a minha experiência seja considerada e validada. Não queremos pessoas no topo do seu privilégio a dizer quem somos ou não somos, não queremos pessoas no topo do seu privilégio ditar como deve ser o nosso corpo e a nossa sexualidade, não queremos pessoas no topo do seu privilégio a referenciar todos os discursos de uma olhada não crítica, não contundente, não coerente com uma mudança estratégica do mundo.

Dani

Imagem: data - jayceboi83

Daniela Filipe Bento

Escrito por Daniela Filipe Bento Seguir

escreve sobre género, sexualidade, saúde mental e justiça social, activista anarco/transfeminista radical, engenheira de software e astrofísica e astronoma